quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

ESTÁ GRAVADO NA PEDRA

2002. Completávamos mais de duas décadas reclamando e culpando o outro pela falta de zelo com nossa segunda casa. Recordei-me que, quando menino, saciei minha fome construindo a minha primeira caixa de engraxate a partir de pedaços de madeira, pano e escovas que iriam para o lixo. Levantei a cabeça e decidi colocar fim na covardia e omissão, minha e de meus pares. Aos poucos fui percebendo que gastava mais tempo atrás de alguém que pudesse me ajudar a resgatar a dignidade perdida, do que me dedicando à conquista dela. Passei então a relatar, em milhares de páginas, as irregularidades que ia descobrindo. Na Justiça, ganhava dezenas de decisões favoráveis, mas não as levava. Finalmente, o Ministério Público obrigou o Ministro do Trabalho a realizar as eleições limpas no Conselho de Fisioterapia e Terapia Ocupacional do Estado de São Paulo, o Crefito-SP...

2004. Chegamos ao poder. Dois cachorros da raça pastor alemão guardavam a entrada da nossa segunda casa. Com a determinação judicial e a ajuda da força policial, cruzamos o portão do isolamento. Os cães foram acorrentados e os seguranças dispersos. Máquinas de picotar papel, documentações destruídas, computadores formatados... a cena era de devastação. O cheiro de mofo exalava das paredes grampeadas com câmeras e microfones. Naquela casa alugada e suja estavam abrigadas duas jóias preciosas: Fisioterapia e Terapia Ocupacional.
Lembrei-me do caminhão da minha primeira migração, estacionando na frente de um casebre coberto pela poeira de pó de cimento e infernizado pelo trem de ferro. Tinha 8 anos de idade e carregava um forte sentimento de insatisfação. Mamãe estava dividindo um ovo para alimentar os filhos, quando apontou o caminho do futuro. Queria ganhar dinheiro para comprar uma travessa de vidro temperado que se leva ao forno. Aquele casebre, com utensílios de ferro enferrujado, não era digno de nossas vidas. O vidro temperado representava o novo, o moderno, a vida melhor que queríamos ter.
A história se repetia. Como podíamos nós, profissionais treinados na arte de socorrer a vida, ter deixado a irresponsabilidade e o descaso florescer em nossa própria casa? Depois de vistoriar toda aquela destruição, fui para Avenida Paulista, uma das principais artérias urbanas do mundo. Vi os prédios espelhados, exibindo o cuidado e o progresso. Nos olhos fechados, ia projetando as cenas do casebre, da fome e do vidro temperado. Chorei de indignação e pedi a Deus que me ajudasse a construir uma moradia digna para nossas profissões.
2009. Inauguramos um prédio espelhado, com 2.400 metros quadrados de área construída, de 12 andares, no coração da metrópole paulista. É a nona sede que compramos no Estado. O prédio de vidro temperado, moderno e automatizado, revela o quanto fomos negligentes no passado. Mas ele é também o testemunho do muito que se pode fazer com pouco e a esperança de fazermos ainda melhor. Para mim, essa conquista foi tão importante como a primeira travessa de vidro temperado que levei para casa, com o dinheiro que ganhei como engraxate. Agora podemos dizer com orgulho que temos uma moradia digna da grandiosidade de nossas profissões.
Porém, mais importante do que toda a infraestrutura que construímos, é o sistema de gestão via web que desenvolvemos, colocando o Conselho de Fisioterapia e Terapia Ocupacional do Estado de São Paulo.ao acesso da população, dos profissionais e de seus gestores de qualquer lugar do mundo. Seremos o primeiro órgão público a abolir o uso do papel. Iremos disseminar para o Brasil esse novo modelo de gestão do bem público.
Dos anos de ditadura, herdamos a desconfiança, a descrença e a intriga. O segredo de nosso sucesso está em não se apequenar nas coisas que nos diminui e nos imobiliza. Valorizando o trabalho do outro, conseguimos criar e inspirar uma equipe com mais de 100 funcionários. Devemos a eles todas as nossas conquistas.
Nas cinzas da antiga casa encontramos o trabalho dos que vieram antes de nós. Devemos a eles o reconhecimento e a organização inicial de nossas profissões. Se hoje estamos no topo da produção técnico-científica, agradecemos aos nossos milhares de mestres e doutores. A conquista e expansão do mercado de trabalho, para muito além das fronteiras originais, devem ser tributadas ao espírito empreendedor de nossos profissionais. A eleição de vários profissionais para cargos públicos revela que, finalmente, assumimos a cidadania na plenitude.
Na "Calçada Mão da Fama" está esculpido no mármore o tributo ao trabalho que nossos profissionais realizaram nos 40 anos de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. A escolha dos 40 profissionais não foi fácil, posto que os 150 mil profissionais no Brasil são todos dignos dessa honraria. Mas o importante é o simbolismo do gesto de reconhecer e homenagear o outro. Precisamos disseminar a cultura de olhar para o lado positivo e bonito das pessoas. Também está na pedra o nome daqueles que se destacaram no desenvolvimento de nossas profissões, mas que não viveram para testemunhar nossas conquistas.
As mãos dos homenageados estão abertas na entrada da sede, para que o trabalho delas sirva como nossa inspiração. Apesar da chuva torrencial que caiu na noite do dia 26 de novembro de 2009, a esquina da rua Cincinato Braga com a Teixeira da Silva, a 100 metros do metrô Brigadeiro, estava lotada. Agradeço a todos os presentes, na figura do prefeito da cidade de São Paulo Gilberto Kassab, por ter nos ajudado a escrever na história mais uma conquista da Fisioterapia e da Terapia Ocupacional no Brasil.
Na frente do prédio está escrito, embaixo do símbolo da República do Brasil: Crefito-SP - Conselho de Fisioterapia e Terapia Ocupacional do Estado de São Paulo. Dedico essa conquista aos conselheiros e funcionários do CREFITO-SP, que me ajudaram a olhar para frente, em busca do que, para muitos, era apenas mais um compromisso eleitoral. Agradeço também o carinho e a cumplicidade da minha esposa Nádia e de meus filhos, Gabriela, Bárbara e João Marcos.
Nossos feitos não foram realizados para agradar o outro, mas para contentar e dar sentido às nossas próprias vidas, que estão transbordando de alegria. Feliz Natal e um 2010 cheio de travessas de vidro temperado e com mais empregos para nossos profissionais.
Gil Lúcio Almeida, fisioterapeuta, mestre, PhD e presidente do CREFITO-SP.
Autor do livro “O engraxate que virou PhD”